Talvez a chuva não seja tão ruim assim.
Eu sempre odiei dias chuvosos. Não como a maioria das pessoas, já que o meu ressentimento com a chuva era algo muito mais íntimo, mais pessoal. A chuva, para mim, era a forma como o mundo mostrava que estava triste. Era a forma mais pura e verdadeira de olhar para nós, meros mortais, e simplesmente desabar. "Eu também tenho dias ruins!", era o que ele dizia. E eu odiava sentir tristeza. Odiava o mundo por se sentir triste.
Mas o que eu odiava tanto quanto dias chuvosos era quando eu esquecia o meu guarda-chuva. Era por isso que eu estava no ponto de ônibus, tarde da noite, sentado no banco úmido de madeira enquanto abraçava minhas pernas e culpava quem quer que fosse a divindade responsável pelo tempo.
Foi quando você apareceu, correndo pela chuva e atravessando o sinal aberto em meio aos carros, até onde eu estava. De primeira mão não o reconheci, talvez porque a chuva e a pouca iluminação tornassem minha visão um pouco mais turva do que já era, mas quando você se aproximou com sua mochila do Taz, meu coração errou uma batida e eu tive certeza de que era você.
Você sorriu em minha direção e tirou a franja molhada de seus olhos. Colocou sua mochila do lado da minha e eu prendi minha respiração no momento em que você sentou, bem ao meu lado, abrindo a boca para me dirigir a palavra. Meu nome.
Sua voz parecia veludo quando você pronunciava meu nome.
Você inclinou o corpo para frente, apoiou os cotovelos em suas coxas e abaixou a cabeça. Seu cabelo caiu pelas laterais de sua mandíbula e cobriu boa parte do seu rosto. Aproveitei aquele momento para vagar em você, observar tudo aquilo que não tinha sido captado por meus olhos e esquecer um pouco da chuva.
Voltei a respirar.
Acho que me perdi passeando por suas roupas molhadas, por suas mãos inquietas sobre seu joelho ralado e por seu aroma de café que quando finalmente voltei a mim, seus olhos eram linhas retas que completavam seu sorriso, focados na minha pessoa.
Seu olhar queimava.
Desviei olhar não por vergonha ou timidez, mas porque se eu continuasse olhando para o seu rosto, talvez meu corpo agisse sozinho e eu não fosse capaz de me controlar.
Então você riu e meu coração se expandiu dentro do meu peitoral.
Eu olhei pra você e por um fração de segundos eu vi seus olhos brilharem.
Você me perguntou se eu tinha guarda-chuva. Eu respondi que não.
Depois você perguntou sobre a faculdade e entre perguntas aleatórias, a maioria por educação, você me perguntou porque eu estava ali tão tarde da noite.
Eu estremeci. Meu estômago revirou e por apenas alguns momentos eu pensei em dizer a verdade.
Pensei em gritar bem alto até esvaziar os meus pulmões. Pensei em contar que eu finalmente tinha criado coragem para tentar me aproximar de você, que eu tinha parado de vagar como uma sombra e que finalmente tinha dado o primeiro passo para entrar na cafeteria que você trabalhava. Pensei em levantar do banco e com todos os meus sentimentos à flor da pele, confessar que eu era totalmente e extremamente apaixonado por você. Quis, naquele mesmo momento, te contar que eu estava ali naquele ponto de ônibus perto do seu trabalho justamente porque amarelei bem na hora de entrar na cafeteria e resolvi optar por te esperar no ponto de ônibus, só que você se atrasou.
Recolhi toda e qualquer ideia absurda que envolvesse te mostrar a parte mais intima do meu ser e apenas respondi que perdi o ônibus.
Fiz a mesma pergunta para você.
Você respondeu que havia acabado de sair do trabalho e que tinha optado por ir para casa caminhando, mesmo com a chuva, mas desistiu assim que viu sentado no banco e quis ficar comigo para matar a saudade de não ter me visto na aula pela manhã.
Eu ri. Não porque era engraçado, mas porque fiquei tão surpreso que a risada escapou dos meus lábios e eu tive que tampar a boca com a mão. Você riu também e quando olhei em sua direção, de canto de olho, pude jurar que suas bochechas ficaram vermelhas. Então, você ajeitou a postura e desviou o olhar.
Silêncio.
Apenas o barulho da chuva torrencial ao nosso redor preenchia o espaço vazio que nossas frases curtas e perguntas idiotas deixaram para trás.
"Eu deveria falar alguma coisa?" essa frase martelava meu crânio e me fez criar diversas situações imaginárias onde qualquer uma delas poderia facilmente acabar até mesmo com a minha possível amizade com o garoto dos meus sonhos. Eu estava nervoso, você sabia disso, e por isso você abriu a boca mais uma vez e tentou preencher os espaços vazios.
"Você gosta da chuva?"
A pergunta me pegou de surpresa. Me forcei a olhar em sua direção e dei de cara com sua nuca bem próxima a mim. Baixei a cabeça para olhar as palmas das minhas mãos e, pela primeira vez na vida, deixei com que uma das verdades sobre mim tomasse forma e saísse pela minha garganta.
"Não, eu odeio a chuva".
Fiquei com medo de que você de alguma forma me julgasse ao saber sobre aquela informação.
Mas você apenas ficou de pé e em uma mísera fração de segundos, pegou na minha mão, me puxando até eu ficar de pé. Você colocou sua mochila atrás das costas, eu rapidamente peguei a minha mochila também, você ficou de frente para mim e disse:
"Mesmo que esteja chovendo e você seja o único sem um guarda-chuva, não se preocupe, apenas corra e se molhe. Você estará em casa em breve".
Não tive tempo para raciocinar a sua frase porque antes mesmo que eu notasse já estávamos correndo na chuva e minha mente girava com a informação de que você estava segurando minha mão. Minha pequena e calejada mão.
A chuva, que agora encharcava gradativamente minhas roupas, estava gelada e foi a responsável por acabar com meus devaneios assim que tocou minha nuca.
Minha visão estava um pouco turva, mas conseguia enxergar perfeitamente a sua silhueta magra correndo a minha frente. Você virou para trás e sorriu para mim, me puxando pra mais perto assim que subimos no cordão da calçada. Eu nunca fui do tipo atleta e já estava com os pulmões ardendo em chamas, então assim que dobramos a esquina, eu parei e te puxei.
Com dificuldade, perguntei aonde estávamos indo. Minha respiração oscilava, meus pulmões implorando por ar e mesmo assim você apenas se aproximou e segurou minha mão com mais força. Sem dizer uma palavra, você só voltou a me levar por entre as ruas escuras, dessa vez seguindo o meu ritmo.
Em nenhum momento eu de fato me preocupei com o destino ao qual você estava me levando porque a única coisa que rodava a minha mente naquele momento era você, nós, seus sorrisos quando olhava para mim, sua mochila do Taz e a chuva envolvendo nós dois.
Você parou tão subitamente alguns minutos depois que eu acabei me chocando em seu ombro e, todo preocupado, você me perguntou se eu estava bem.
Seus olhos verdes brilhavam com a luz do poste que iluminava seu rosto.
Você estava encharcado.
Você se aproximou de mim e nervoso, eu desviei meu olhar e olhei ao redor. Estávamos no topo de uma escadaria, a mesma escadaria que eu subia todos os dias para ir até a faculdade.
Eu olhei para você e seus olhos ainda estavam ali, observando meu rosto, brilhando.
Você soltou a minha mão e quando eu perdi seu calor, a chuva e o vento frio me envolveram. Você deve ter visto que eu estremeci porque na mesma hora chegou mais perto e substituiu a corrente de ar gelado pelo seu hálito quente. Perto demais.
Você sussurrou uma frase que eu não entendi muito bem e sussurrando de volta eu te pedi para repetir. Você riu baixinho da minha confusão e sua mão subiu por meu antebraço até chegar em minha cintura, onde seu braço me envolveu. Eu já não ouvia mais nenhuma palavra que saía da sua boca porque meus ouvidos estavam tomados pelo som do meu sangue bombeando meu corpo inteiro, tentando informar meu cérebro de que aquilo não era um sonho e eu estava mais perto de você do que nunca havia estado antes.
Você continuava falando, sua boca abrindo e fechando, seus olhos alternando entre algumas partes do meu rosto e quando finalmente voltei a mim a única coisa que consegui ouvir, entre todos aqueles sussurros quase inaudíveis e o barulho da chuva, foi uma pequena frase carregada de significado que acordou as borboletas adormecidas do meu estômago e as fez voarem até meu coração.
"Eu sou apaixonado por você".
Eu estava perto o suficiente para ouvir, mas longe o bastante para entender. Meu coração, que nem em nossa pequena maratona de alguns segundos atrás havia acelerado tanto, começou a bater como se fosse uma bomba prestes a explodir. Eu não sabia se tinha ouvido direito ou se aquela frase foi apenas uma peça que meu cérebro havia pregado, mas o som da sua voz foi tão leve e verdadeiro que me obriguei a soltar a respiração que nem sabia que tinha prendido. Foi então que, antes mesmo de um piscar de olhos, sua boca veio de encontro com a minha e você selou/preenche/acabou com todo e qualquer espaço entre nós.
Fechei os olhos e minhas mãos correram de encontro com a sua nuca, afundando-se no mar castanho dos seus fios de cabelo. Você apertou o braço em minha cintura e eu flutuei. E ao mesmo tempo que eu flutuei, eu queimei, congelei, morri, revivi, virei cinzas, virei gota de chuva, virei raio de sol, mudei de realidade, fui ao espaço, voltei e me tornei invencível.
Eu era você, você era eu, nós éramos um só e a chuva estava na plateia assistindo o nosso lindo espetáculo.
Eu queria viver no seu beijo.
Quando você se afastou o rastro do seu beijo permanecia intacto e as borboletas do meu coração chamavam seu nome.
As suas borboletas me chamavam também.
Você sorriu e, sem notar, eu já estava sorrindo também.
Você sempre soube como me fazer sorrir.
Você gargalhou e afundou o rosto na curvatura do meu pescoço, contornando minha clavícula com beijos.
Minhas mãos tremiam em sua nuca, meus dedos dançando em seu cabelo molhado e meu coração fazendo a festa em meu peito.
Depois do que pareceram horas envolvido no teu abraço, arrepios percorrendo minha alma, a chuva contornando as curvas de meu corpo, você me questionou se eu ainda odiava a chuva.
Eu me afastei apenas o suficiente para encontrar seu rosto e, assustado, você segurou minha cintura com mais firmeza. Eu deslizei uma das mãos até chegar em sua bochecha e segurei sua mandíbula, acariciando seu maxilar com meu polegar. Eu respirei fundo e criei coragem o suficiente para encarar suas orbes esverdeadas e, sorrindo, lhe respondi:
"Talvez a chuva não seja tão ruim assim".
E como uma tempestade cheia de raios, você me tomou em seus braços mais uma vez e me envolveu por completo. Afundei meu rosto no emaranhado úmido de suas roupas e captei seu cheiro. Eu era Fênix naquele momento.
É, eu nunca imaginei que correr na chuva me levaria até em casa. Agora eu já nem tenho mais um guarda-chuva, joguei todos fora, só pra poder voltar correndo pela chuva, com a mão colada na tua, para depois me aconchegar no teu abraço.
Meu lar sempre foi você e a chuva sempre foi plateia do nosso amor.
caramba, não tenho palavras pra dizer o quanto sua escrita é linda. amei o texto e tudo que tem nele! muito fofo!
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